APA ESTADUAL DE MACAÉ DE CIMA: PARAÍSO
PERDIDO OU PRESERVADO?
Virgínia
Villas Boas Sá Rego[1]
“Todos
têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida,
impondo-se ao Poder Público e à coletividade o
dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e
futuras gerações” (Constituição da República Federativa do Brasil; Artigo 225º).
“As noções de importância, de necessidade, de
interesses são mil vezes mais determinantes que a noção de verdade. Não, de
forma alguma, porque elas a substituam, mas porque medem a verdade do que digo” (Deleuze).
INTRODUÇÃO
Este
trabalho pretende expor a situação atual do processo de implantação da Área de
Proteção Ambiental (APA) de Macaé de Cima, unidade de conservação da natureza
(UC) de uso sustentável[2], criada
pelo Decreto estadual nº 29.213/2001, com cerca de 35 mil hectares, abrangendo cerca de 40% do município de Nova
Friburgo (RJ) (distritos de Lumiar, São Pedro da Serra e parte de Mury), na
zona de amortecimento no entorno do Parque Estadual de Três Picos (PETP), a
maior unidade de conservação estadual, à qual se sobrepõe parcialmente.
Estas
reflexões inserem-se no estudo de caso que está sendo desenvolvido para o curso
de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente (PPGMA) da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)[3],
sobre os processos participativos envolvidos na gestão de duas APAs, criadas,
dentre outros motivos, para proteger as nascentes da bacia hidrográfica do Rio
Macaé (RJ): a já referida APA de Macaé de Cima e a APA do Sana (município de
Macaé), que guardam entre si certa identidade geográfica, histórica e cultural.
A partir da análise comparativa de duas configurações empíricas específicas, usando
os métodos de investigação etnográfico, histórico e documental, o estudo procura
responder à questão: Como certas coletividades vêm conseguindo construir
instrumentos para efetivar sua “cidadania ambiental”[4], diante
das forças ligadas ao Estado ou ao mercado?
A investigação, partindo dos processos relativos
às transformações que espaços locais, considerados “rurais” e convertidos em
UCs pelo Poder Público, vêm sofrendo na sociedade contemporânea
globalizada, pretende identificar o diálogo específico exercido por suas
populações, entre os seus próprios segmentos e com outros atores sociais, nesse
contexto. Busca levantar a percepção dos atores locais, especialmente dos
“pequenos produtores rurais”, quanto ao que consideram ser “direito ambiental”,
“participação” e “cidadania”, delineando as diferentes perspectivas envolvidas
na implantação das UCs, cuja gestão,
deve ser “participativa”[5] e
viabilizar um “desenvolvimento local
sustentável”.
Objetiva-se,
também, enfocar os processos envolvidos na formação da cidadania, considerando
a prática participativa dessas populações em fóruns diretamente relacionados à
questão ambiental, cuja instituição foi possibilitada pela Constituição brasileira
de 1988. Pretende-se contribuir para a reflexão sobre os processos envolvidos
na construção coletiva de um novo projeto de gestão democrática e
participativa, em que os “cidadãos”, “autônomos” (CASTORIADIS e COHN-BENDT,
1981), sejam capazes de deliberar sobre seu destino comum e reorientar os rumos
assumidos pelas relações entre si e com o seu ambiente.
CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS
Segundo
uma abordagem processual, integrada e holística, o ambiente é enfocado em sua
complexidade (MORIN, 1997) e relatividade (INGOLD, 2000). Adota-se uma
perspectiva temporal e relacional, que busca identificar os processos sociais
que sustentam os significados envolvidos no campo da gestão ambiental. A sociedade é
considerada um sistema “dinâmico, desordenado e aberto” (BARTH, 2000),
constituído pelas interações entre os atores, que produzem “respostas ativas” e
próprias às circunstâncias impostas pelas pressões sociais.
O
instrumental metodológico da abordagem antropológica permite “relativizar”,
“desnaturalizar”, certos conceitos teóricos usados pelas Ciências Sociais, tais
como os conceitos de “natureza”, “cidadania”, “direito ambiental”,
“participação”, centrais à análise dos processos de construção do ambiente.
Pretende-se compreender a “tradução” de tais conceitos em termos das visões e
conhecimentos locais, considerando os processos sociais que afetam a área em
estudo e as múltiplas perspectivas de atores diferentemente posicionados, que
utilizam tais concepções de acordo com suas tradições culturais e experiências
históricas. A vivência dos processos relacionados à implantação da UC e o
confronto dos valores locais com aquelas categorias, trazidas no bojo desse
processo, faz aflorar as suas capacidades de “criação” e de “improvisação”,
adequando tais conceitos aos seus interesses e valores e promovendo, assim, sua
“indigenização” (SAHLINS, 1997).
A IDENTIFICAÇÃO DOS PROCESSOS E DOS ATORES
SOCIAIS
A
APA de Macaé de Cima pode ser considerada um exemplo dos possíveis e diferentes
processos locais assumidos diante do fenômeno global de degradação ambiental e
do conseqüente processo de “ambientalização” (LOPES, 2006) da sociedade, a partir dos anos 1970, foi configurando o “meio ambiente” como uma
questão pública, originando novos
códigos de conduta e regulamentações, para prevenção de “riscos”, definidos por
especialistas, legitimados pelo conhecimento científico, que, muitas vezes, não
são percebidos enquanto tais pelos atores envolvidos na situação. Foram criadas
políticas públicas ambientais (VIEIRA, 2001), baseadas, dentre outros
instrumentos, na criação de “áreas protegidas”, para proteger a biodiversidade
in situ, realizada, muitas vezes, em espaços “rurais’”, vistos como “naturais”,
sem levar em consideração as populações que lá viviam.
A
APA de Macaé de Cima localiza-se na região Serrana do Estado do Rio de Janeiro,
abrangendo boa parte das nascentes da Bacia Hidrográfica do Rio Macaé (RJ), na Reserva da Biosfera da Mata Atlântica,
estabelecida pela UNESCO (RAMBALDI, 2003). É considerada pelos órgãos públicos
ambientais, orientados por pareceres técnico-científicos, fundamental para a
formação de um corredor de biodiversidade na Serra do Mar, que propicie
interconexões entre fragmentos menores das serras litorâneas e do Vale do
Paraíba, facilitando, assim, a dispersão de espécies e a recolonização de áreas
degradadas (RAMBALDI, 2003). Boa parte desta mata não é mais primária, mas
apresenta diversos estágios de sucessão de recomposição, sendo fruto de um
longo processo histórico de manejo humano de espécies vegetais e animais. Nas
altitudes mais elevadas, nas áreas das nascentes do Rio Macaé, ainda podem ser
encontrados remanescentes da Floresta Ombrófila Densa, preservados pelas
dificuldades de acesso.
A bacia
do rio Macaé (AMADOR, 2003) abrange uma área de aproximadamente cerca de 1765 km²;
é a maior bacia exclusivamente estadual em termos de extensão. Suas nascentes,
em grande, parte, estão localizadas no
município de Nova Friburgo. Apesar de sua extrema importância ambiental,
em termos de riqueza de recursos hídricos, biodiversidade e geodiversidade, vem
sofrendo sérias ameaças à sua preservação, pois nela coexistem uma demanda
crescente por recursos hídricos e intensas pressões antrópicas sobre as áreas
marginais dos cursos d’água, que podem afetar a qualidade e a quantidade da
água disponível. Sua gestão requer grande
complexidade e visão sistêmica, pois envolve vários municípios, diferentes
realidades socioambientais e diversos tipos de usos do solo, como as áreas das
nascentes do Rio Macaé, na Região Serrana, e a zona de planícies costeiras e
estuarina, onde predominam as áreas urbanas e existem grandes empresas
instaladas na cidade de Macaé e preocupadas em garantir a qualidade e a
quantidade de seus recursos hídricos, como a Petróleo Brasileiro S.A.
(Petrobrás) e as Usinas Termoelétricas Norte Fluminense e Mário Lago. Macaé
concentra 85% da produção petrolífera nacional e 47% da produção de gás,
extraídos da Bacia de Campos, ocupando cerca de 46 mil pessoas; sua economia
cresceu 600% nos últimos dez anos[6].
Atualmente, as águas do rio Macaé também são usadas, principalmente, para o
turismo, esporte e lazer, para a irrigação, para a geração de energia elétrica,
bem como para a diluição de despejos domésticos, industriais e agrícolas, o que
causa sua degradação. Um dos grandes desafios da gestão da Bacia do Rio Macaé é
evitar que os interesses das zonas urbanas, politicamente mais poderosas em
termos econômicos e populacionais, não predominem sobre os interesses da Região
Serrana, relativamente menos poderosos,
porém, determinantes para a manutenção da quantidade dos recursos hídricos da
Bacia, pois são as áreas produtoras de água.
O
alto da Bacia do Rio Macaé, desde o século XIX, foi ocupado por pequenos e
médios agricultores familiares, muitos descendentes dos imigrantes suíços e
alemães “colonizadores” de Nova Friburgo, que para lá se deslocaram, em busca
de terras mais favoráveis ao cultivo do café, já praticado em larga escala nas
regiões vizinhas. Desenvolveram uma pequena e média agricultura de base
familiar, dedicada à cafeicultura, à produção de subsistência e à criação de
bois, aves e porcos (MEYER e ARAÚJO, 2003). Com a decadência do café, nos anos
1930/40, passaram a ser cultivados o inhame e a banana; muitas áreas antes
produtivas foram abandonadas, permitindo seu reflorestamento, ou foram
transformadas em pastagens. A abertura de estradas de terra, no final dos anos
1950, facilitou o acesso à sede do município, antes feito por trilhas para cavalos ou
burros. Os agricultores passaram, então, a cultivar tomate, pimentão, batata,
inhame, banana, dentre outros, numa região que, até os anos 1980, era incluída
no chamado “cinturão verde”, que abastece a área metropolitana do Rio de
Janeiro (MUSUMECI, 1987).
O
relativo isolamento foi rompido, nos anos 1980, pela pavimentação asfáltica da
rodovia RJ-142, trecho Muri-Lumiar, e pela eletrificação da maior parte da
região; estimulando o início do desenvolvimento turístico. Em 2006, o trecho
Lumiar-Casimiro de Abreu da rodovia RJ-142 -
Estrada Serramar - foi asfaltado.
Desde então, iniciou-se intenso e
acelerado processo de transformações sociais, econômicas, culturais e espaciais.
Além dos turistas, chegaram novos moradores, fugindo dos centros urbanos e em
busca de “formas alternativas” de vida. As atividades agropecuárias foram sendo
gradualmente substituídas por atividades ligadas ao turismo, à construção
civil, à prestação de serviços e ao comércio, como principais fontes de renda
para seus antigos moradores, que, “de lavradores se tornaram cortadores de
grama” (SÁ REGO, 1988). Muitos agricultores procuraram combinar as tradicionais
com as novas oportunidades de renda e trabalho, constituindo unidades
familiares que se caracterizam pela pluriatividade (CARNEIRO, 1998).
O
crescimento populacional e a vinda de novos moradores de origem urbana
redefiniram os processos de ocupação e de uso do solo; a especulação
imobiliária provocou a fragmentação das propriedades e uma transferência
parcial da propriedade da terra. Muitos imóveis alteraram suas funções
agrícolas para se tornarem residências, sítios de veraneio ou pousadas, locais
de consumo e de “contemplação da natureza”, em vez de produção, gerando novos
valores e configurações territoriais. Desenvolveu-se um novo modo de regulação
das formas de consumo da natureza, associado ao espaço rural (MATHIEU e JOLLIVET,
1989), que se soma à ‘apropriação utilitária’, feita pelos produtores rurais;
instaurou-se um usufruto ‘desinteressado’, informado pela sensibilidade
artística ou pela compreensão científica (CHAMBOREDON, 1985), muitas vezes
conflitante com os valores tradicionais locais. Configuraram-se, assim, novas
“ruralidades”, desencadeando o surgimento de outras concepções sobre o “rural”,
que não é mais necessariamente agrícola.
Os
processos de diferenciação e hierarquização social se acentuaram, em
comunidades antes marcadas por relações de parentesco ou vizinhança.
Constituíram-se novos ordenamentos nas relações sociais, expressos por mudanças
nos modos de ser, viver e pensar de suas populações locais originais: pequenos
produtores rurais, cuja identidade era garantida pelo compartilhamento de um
modo de viver e, atualmente, é influenciada
pela e na interação com os turistas, com os novos moradores e com os agentes
das instituições do mundo urbano industrial. Foram introduzidos hábitos,
valores e tradições culturais, que passaram a interagir com os valores,
costumes e saberes locais; formaram-se dois grandes grupos, segundo a percepção
local: os “de fora” e os “do lugar”, cujas interações envolvem diferentes
padrões de relações sociais, desde o conflito aberto, devido à intolerância de
ambas as partes, à convivência profícua e respeitosa, que proporciona troca de
saberes e crescimento mútuo.
Também
ocorreram impactos ambientais em áreas já degradadas por técnicas agropecuárias
tradicionais, baseadas na queimada, no cultivo e na criação de animais em
encostas e margens dos rios e no uso indiscriminado de agrotóxicos. Aumentaram
os desmatamentos realizados para construção de imóveis e abertura de estradas,
intensificando os processos erosivos das encostas e de assoreamento dos cursos
d’água, crescentemente poluídos com esgotos e resíduos sólidos e que já vêm apresentando
diminuição no seu volume hídrico.
Por outro lado, a importância dos
recursos hídricos e da biodiversidade da região despertou o interesse de organizações
não-governamentais “ambientalistas”, governos e grandes empresas, provocando a
introdução de várias novas regulamentações exteriores, relacionadas à
“preservação ambiental” e ao “desenvolvimento sustentável”. O discurso
ambientalista, veiculado pelos “novos” moradores e pelos meios de comunicação,
ganhou destaque. Além disso, a partir dos anos 1990, os órgãos públicos
ambientais passaram a intensificar a fiscalização e a multar, principalmente,
os pequenos agricultores, muitas vezes de forma agressiva e autoritária,
segundo relatos locais. Em 2001, foi
criada a APA em estudo. Estas novas regulamentações, valores e conhecimentos em
interação com as tradições culturais locais vêm provocando o surgimento de
intensos conflitos, relativos aos múltiplos interesses envolvidos.
A transformação de uma região em
“área de proteção ambiental”, ou em qualquer outro tipo de UC, implica uma
alteração das formas de apropriação simbólica da natureza e a introdução de
novos usos sociais do espaço (CHAMBOREDON, 1985), definidos pela interação de
múltiplos agentes. Longe de ser definida por critérios “naturais”, uma UC é um
“artefato cultural” (BARRETO, 2001), um “construto socionatural”, “instável e
indeterminado”, “síntese entre natureza e cultura”, definido num dado contexto
histórico, a partir de uma correlação de forças, orientada por critérios técnico-científicos
dominantes. É uma regulamentação que impõe a visão do Estado (mais moldada
pelas populações urbanas) de natureza e de ambiente, estabelecendo normas para
o seu uso, diante da função ambiental atribuída a certas áreas, em nome de um
“patrimônio coletivo”, por sua suposta importância “natural”, definida por
“critérios científicos”. Esta visão pode entrar em choque com as necessidades e
saberes locais, desqualificar as formas tradicionais de relação com a natureza
e buscar substituí-las por outras, sem considerar o papel das populações rurais
na formação dessa “natureza” (MATHIEU e JOLLIVET, 1989) e sua visão da terra
como um espaço produtivo, de obtenção da sobrevivência. Isso aconteceu na
criação da APA de Macaé de Cima.
No
entanto, a Lei do SNUC, seguindo o espírito da Constituição brasileira de 1988,
estabelece que a criação e a implantação das UCs deve ser feita de forma
participativa e que sua gestão pública e democrática, deve ocorrer por meio da
constituição de conselhos (deliberativos ou consultivos), que
incluam representantes do Poder Público, da sociedade civil organizada e
dos atores econômicos. Estes conselhos, junto com outros instrumentos de gestão
baseados na participação popular, são novos canais de participação, vistos com
potencial para ampliar e consolidar a consciência crítica, a democracia e a
cidadania (GOHN, 2001). Foram introduzidos pela Constituição Federal do Brasil,
de 1988, elaborada no contexto de redemocratização do país, após o longo período
ditatorial, com ativa participação dos movimentos sociais, de instituições e de
associações da sociedade civil organizada. A Lei Magna instituiu os princípios
da gestão descentralizada (municipalização), democrática e participativa, e a
possibilidade da criação de organismos consultivos ou deliberativos, visando
incluir setores mais amplos nos processos de discussão, decisão e elaboração
das políticas públicas. No entanto, sua criação também expressa uma
transformação da tradicional modalidade de “comando e controle” praticada pelos
governos, no contexto do Globalismo (IANNI,1997) e da política econômica
neoliberal. Busca estabelecer novo tipo
de relação governo-sociedade, instituindo “parcerias”, dividindo
responsabilidades e criando instrumentos de participação “concedida”
(BORDENAVE, 1994), mecanismos de governança (COZZOLINO, 2005), baseados no
“envolvimento” e no “empoderamento” da sociedade, recomendados pelos organismos
multilaterais internacionais, a partir do “fracasso” das experiências
socialistas e da eclosão dos movimentos sociais, no final do século XX (LOPES,
1997).
Além dos Conselhos das APAs, a
região em estudo vem sendo afetada por muitos fóruns e processos com proposta
participativa, tais como: os planos diretores do desenvolvimento urbano
municipais, aprovados em 2006; as Agendas 21 municipais e locais; a Agenda
21-COMPERJ; na área da APA de Macaé de Cima, o Arranjo Produtivo Local (Governo
estadual, Sebrae e órgãos locais); Conferências municipais, regionais,
estaduais e nacionais de Meio Ambiente e de Desenvolvimento Rural Sustentável,
dentre outras; Conselhos municipais de Meio Ambiente; Comitê de Bacia
Hidrográfica dos Rios Macaé e das Ostras...Todos esses processos vêm introduzindo
novas regulamentações, saberes e valores no cotidiano dos grupos envolvidos,
que respondem de formas diversificadas, de acordo com suas respectivas
experiências históricas e tradições culturais, gerando confrontos entre os
múltiplos atores em defesa de seus respectivos interesses.
A PARTICIPAÇÃO DOS
PRODUTORES RURAIS NO PROCESSO DE IMPLANTAÇÃO DA APA DE MACAÉ DE CIMA
Apesar
de ter sido criada em 2001, a composição do Conselho Consultivo da APA de Macaé
de Cima só foi definida pelo decreto nº 38234, de 2005 e ele só começou a se
reunir em 2006. Durante o ano de 2006, as reuniões bimestrais do Conselho, presidido
pela Fundação Estadual de Engenharia e Meio Ambiente (FEEMA)- órgão encarregado
da fiscalização, controle e licenciamento ambiental no Estado - foram marcadas
por manifestações do conflito latente existente na região entre dois grandes
grupos: os “de fora” e os “do lugar”, “da terra”, envolvendo o confronto entre
diferentes valores, interesses e forças que constituem o meio sócio-ambiental
local. Os principais atores do conflito
eram, por um lado, o então órgão gestor da APA e o autodenominado “Grupo
Pró-APA de Macaé de Cima”, formado pelos “novos” moradores e ambientalistas, e,
por outro lado, os “pequenos produtores rurais”, que não aceitam a criação
desta UC. . Assumindo a identidade de “população tradicional” e a luta em
defesa do “direito de decisão” em relação às suas propriedades e ao território
por eles ocupado há muitas gerações, estes demonstram preocupação com sua
sobrevivência, pois consideram que as novas leis ambientais inviabilizam a
reprodução de sua condição de produtores rurais.
Um dos principais pontos de
discórdia é a problemática da queimada, no contexto do discurso relativo às
mudanças climáticas, em que ela é responsabilizada pela emissão dos gases
estufa, bem como pela redução da biodiversidade e empobrecimento dos solos,
constituindo-se num dos principais focos da ação punitiva dos órgãos de
fiscalização ambiental. Técnica tradicional de cultivo das regiões tropicais, praticada
há inúmeras gerações, é por eles considerada como a maneira menos cansativa
para se limpar o terreno em áreas de encostas, e tem sido responsável pela
destruição de muitas matas ciliares. Os conflitos entre os pequenos produtores
rurais dessa região e os órgãos fiscalizadores já se manifestavam antes mesmo da
criação da APA (ROZEMBERG, 2004), diante da ação truculenta e autoritária do Instituto
Brasileiro de Meio Ambiente (IBAMA) e do Batalhão Florestal - orientados pelo
Código Florestal e pela Constituição de 1988, que define a existência das áreas
de preservação permanentes (APP)- responsável inicial pela rejeição ao discurso
ambientalista, agravada pela criação da APA de Macaé de Cima, vista por eles
como um “ato autoritário e realizado sem consulta à população local”.
É
interessante observar que a categoria “populações tradicionais” (SANTILLI, 2005)
assumiu, no caso em estudo, uma dimensão política estratégica, pois foi
acionada no processo de confronto e luta desse grupo pela construção e
afirmação de sua identidade pública, específica, em oposição à sociedade mais
ampla. Os agricultores da região da APA de Macaé de Cima procuram obter seu
reconhecimento oficial como uma “população tradicional”, o que lhes garantiria
“direitos” no uso de suas propriedades,
segundo as novas leis[7]. Para
eles, ser “da terra” lhes possibilitaria uma posição privilegiada quanto ao
direito de decisão em relação ao meio ambiente local. Assumiram também a
categoria “rural” como suporte de sua identidade, definidora de seu lugar
próprio no mundo social. Organizaram movimentos reivindicatórios junto aos
representantes políticos dos legislativos municipais e estaduais; criaram um
movimento social - a “União das Famílias da Terra (UFT)” - e moveram ação junto
ao Ministério Público contra o governo estadual, pedindo o fim da APA. No
segundo semestre de 2008, foram espalhados pela região, principalmente no 5º
distrito, placas e adesivos da UFT, que se apresenta como “a voz da população
tradicional”. Eles vêm constituindo-se, assim, como ator coletivo reconhecido, em
busca da afirmação do que consideram ser seus direitos de cidadania, mudando
sua relação com os outros grupos da sociedade e redefinindo o rumo da ação
governamental.
Novas
perspectivas se delinearam para a efetiva implantação da APA de Macaé de Cima,
após a mudança de governo estadual, em 2007, que redefiniu as políticas
públicas ambientais e a atuação dos órgãos de gestão e fiscalização ambiental,
orientados por uma visão mais ligada ao
socioambientalismo (SANTILLI, 2005): concepção que defende o envolvimento das
populações na conservação da biodiversidade, ao contrário da postura
preservacionista anterior, que desconsidera as populações e os interesses
humanos. Durante o segundo semestre de 2007, intimado pelo Ministério Público e
no bojo do Programa de Fortalecimento dos Conselhos de UCs administradas por
ele, o Instituto Estadual de Florestas (IEF) realizou três oficinas (em São
Pedro da Serra, Galdinópolis e Boa Esperança), financiadas pelo Projeto de Proteção
à Mata Atlântica (PPMA/KFW), fruto de parceria entre o Brasil e a Alemanha, no
segundo semestre de 2007, com o intuito de produzir um Diagnóstico Rápido
Participativo e recompor o Conselho Consultivo da APA, procurando adequá-lo aos interesses locais. No
entanto, os membros da UFT se recusaram a participar das oficinas e
pressionaram os outros moradores “da terra” a não comparecerem. Além disso,
foram promovidas duas audiências públicas, comandadas pela Comissão de
Agricultura da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, para discutir o
problema dos produtores rurais, sua relação com a APA e buscar soluções que
conciliassem seus interesses e as normas ambientais, na elaboração do Plano de
Manejo e do Zoneamento desta UC. Paradoxalmente, a UFT não quis formalizar a
existência de seu movimento, transformando-o numa associação oficial, que
poderia participar do Conselho Consultivo da APA; mas aproveitaram a estrutura
da Ação Rural de Lumiar, para viabilizar sua organização e comunicação. Atualmente,
seus membros estão debatendo sobre a possibilidade de sua participação no
Conselho, formalizando a UFT ou por meio
de outras associações, como Associações de Moradores. A disputa em relação à
APA foi acentuada em contexto de eleição municipal, em que a UC foi um ponto
essencial das campanhas entre os
candidatos locais à Câmara
Municipal e, mesmo, à Prefeitura Municipal de Nova Friburgo (PMNF).
A
PMNF destacou-se por sua omissão na gestão ambiental e é contrária à APA de Macaé de Cima, por considerar que esta
inibe o desenvolvimento econômico municipal. Alega que a preservação dessa
região já está garantida pelo Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano
Municipal, que, no entanto, ainda não “saiu do papel”. Em 1990, a PMNF havia criado a
reserva ecológica de Macaé de Cima, ocupando cerca de 7.000ha (Decreto Municipal 156/1990), depois
revogada. Foi esta postura ambígua do
poder público municipal que desencadeou, em 2001, a iniciativa de “novos”
proprietários das localidades de Macaé de Cima e Rio Bonito, que pressionaram o
então governador do Rio de Janeiro para a criação de uma UC estadual, menos
sujeita às oscilações dos interesses municipais. No entanto, a criação dessa UC
foi realizada sem consulta pública, exigida pela Lei do SNUC, e com total
desconhecimento da enorme maioria dos moradores da região.
Somente em Junho de 2008, a equipe do IEF
retomou os trabalhos de reconstrução do Conselho Consultivo, abrindo inscrições
para as instituições que quisessem participar. Em Setembro de 2008, foi
realizada nova reunião, quando foram apresentados os resultados do diagnóstico
rápido participativo, obtidos nas oficinas realizadas em 2007 e, em Novembro de
2008, ocorrerá a reunião para definir a nova composição do Conselho Consultivo.
Os
agricultores não compreendem porque devem pagar os custos dos impactos
ambientais causados pelos “outros”, moradores de regiões urbanas e
industrializadas. Eles se sentem “injustiçados”, “punidos, por terem preservado
as matas na região”, enquanto “o resto do mundo destruía a natureza”, pois
estão lá, plantando, há mais de cem anos, e, graças ao seu sistema tradicional
de cultivo, baseado no pousio, são os
responsáveis pela presença das matas na região. O conflito também se manifesta por
uma suposta oposição de “classe”, porque os agricultores se colocam como
“pobres”, “pequenos proprietários” em oposição aos “ambientalistas” e “novos
moradores”, vistos como “ricos”, detentores de recursos financeiros, materiais
e políticos. Mas boa parte desses agricultores possui poupanças expressivas,
constituindo uma “classe média” rural, numa região relativamente próspera.
Por
sua vez, muitos membros do “Grupo Pró-APA” consideram-nos “atrasados” e
“anti-ambientalistas” e afirmam que suas resistências estão sendo estimuladas
por interesses mais amplos,
desqualificando seu potencial de luta, conforme visão preconceituosa dominante que
desqualifica o morador da zona rural, visto como “ignorante”, “atrasado”,
dominado por “superstições” e pelo “fatalismo” religioso. No entanto, estes
“agricultores” vêm constituindo-se enquanto novos atores políticos, lutando por
seus interesses e acionando aquelas que geralmente são consideradas “práticas
ativas de cidadania”, em nome de seus “direitos”. Conseguiram, desta maneira,
impedir a continuidade do processo de implantação da APA de Macaé de Cima, tal
como vinha sendo conduzido pelo órgão gestor estadual, e estão buscando
adequá-lo aos seus interesses e perspectivas. Assim, aquilo que estava sendo
encarado pelos “defensores do meio ambiente” como “conservadorismo” e “falta de
consciência ambiental” dos agricultores revelava, na verdade, uma visão
“preconceituosa”, desconhecedora dos seus interesses e visões. Eles vivenciaram
a seu modo o processo de ambientalização, promovendo uma indigenização (SAHLINS,
1997) do discurso político e ambiental dominante, adequando-o às suas
necessidades e interesses. Os “produtores rurais” da APA de Macaé de Cima
desenvolveram práticas características do que se considera ser uma “cidadania pró
- ativa”, pois conseguiram impedir o processo de implantação da APA tal como
vinha sendo efetivado, buscando redefini-lo segundo suas perspectivas. No
entanto, apesar de sua causa ser legítima, ela também vem sendo manipulada por
interesses ligados à especulação imobiliária e à construção civil e por
divergências políticas entre os governos estadual e municipal.
Evidenciou-se, assim, a complexidade
do conceito teórico e da categoria política cidadania, relacionada aos seus múltiplos
sentidos, assumidos em cada situação concreta, pois o que um determinado grupo
considera ser seu “direito”, ou entende por “cidadania” e “participação”, pode
ser diverso da visão de outro grupo. A cidadania envolve uma dimensão
simbólica, relacionada a valores e significações socialmente estabelecidos;
refere-se à identidade social dos indivíduos, constituída por suas interações
com o Estado e com os outros atores sociais. A partir de um significado
dominante geral, na prática, ela pode assumir diferentes formas e conteúdos,
sendo retraduzida pelos diferentes grupos, conforme suas posições sociais, tradições
culturais e experiências históricas de participação social e política.
CONSIDERAÇÔES FINAIS
O sucesso da implantação da APA de
Macaé de Cima depende da efetiva inclusão dos atores locais organizados no seu
Conselho, que deve assumir um caráter deliberativo e, não somente, consultivo, para
se constituir num instrumento de emancipação e de construção de autonomia e não
num mecanismo de controle da participação popular. Para isso, são necessários
processos dialógicos de Educação Ambiental, que sensibilizem a população para a
necessidade da conservação ambiental e lhes forneçam os instrumentos
necessários (códigos, ferramentas e informações) à sua prática participativa
autônoma.
Além disso, a elaboração do Plano de
Manejo deve efetivamente procurar articular uma rede sociotécnica, envolvendo
troca de saberes entre os atores locais e os gestores dos órgãos ambientais, considerando
os valores e interesses dos primeiros, além dos critérios técnicos e
científicos, na definição das ações e
regulamentações implementadas. É
fundamental o desenvolvimento de políticas públicas relacionadas à oferta de
alternativas de geração de renda, sob uma perspectiva sustentável, como as
diferentes técnicas de agroecologia (sistemas agro-florestais, agricultura
orgânica, etc), cultivo de ervas, diversas modalidades de turismo (ecoturismo,
turismo rural, turismo de aventuras, geoturismo), envolvendo capacitação da mão de obra e oferta
de subsídios técnicos e financeiros. Também devem ser criados e aplicados na
região instrumentos econômicos indutores de conservação ambiental, tais como pagamentos
pelos serviços ambientais relativos à produção de água, mecanismos relativos ao
mercado de carbono e o ICMS verde.
A
análise dos processos envolvidos na implantação das APAs em estudo pode ser um
importante subsídio para a gestão participativa de outras UCs, que deve
enfrentar o grande desafio de considerar os anseios e perspectivas das
populações que nelas residem, principalmente aquelas ligadas à pequena produção
agrícola familiar, geralmente, desvalorizadas e marginalizadas pelas políticas
públicas. Além disso, o êxito de qualquer experiência de implantação de UC
depende da efetivação de possíveis alternativas de atividades geradoras de trabalho
e de renda para as populações envolvidas, mas que estejam de acordo com suas
aspirações e valores culturais, assim como com a legislação ambiental. No
entanto, enquanto o Estado brasileiro for caracterizado pelo autoritarismo
(explícito e implícito), por práticas clientelísticas e pela defesa dos
interesses privados, existirão muitos obstáculos para uma participação popular
efetivamente democrática, nos diferentes níveis e instâncias da vida social,
possibilitadora da construção de uma sociedade sócioambientalmente justa.
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[1] Socióloga, Professora da UCAM-Nova
Friburgo e da rede pública-RJ; Mestre em Educação (PUC-RJ) e Doutoranda do
PPGMA - UERJ
[2] A Lei do Sistema Nacional de Unidades
de Conservação (Lei do SNUC - Lei nº 9.985/2000) estabelece dois grupos de
unidades de conservação: o grupo de unidades de proteção integral (Estação
Ecológica; Reserva Biológica; Parque Nacional; Monumento Natural; Refúgio da
Vida Silvestre), em que só é permitido o uso indireto dos recursos naturais)
e o grupo das unidades de uso
sustentável (Área de Proteção Ambiental; Área de Relevante Interesse Ecológico;
Floresta Nacional; Reserva Extrativista; Reserva de Fauna; Reserva de
Desenvolvimento Sustentável e Reserva Particular do Patrimônio Natural), que
têm como objetivo compatibilizar a conservação da natureza com o uso
sustentável de parte de seus recursos naturais. A Área de Proteção Ambiental é
definida como “uma área em geral extensa, com um certo grau de ocupação humana,
dotada de atributos abióticos, bióticos, estéticos ou culturais, especialmente
importantes para a qualidade de vida e o bem-estar das populações humanas, e
tem como objetivos básicos proteger a diversidade biológica, disciplinar o
processo de ocupação e assegurar a sustentabilidade do uso dos recursos
naturais”, podendo ser constituída por terras públicas ou privadas.
[3] A pesquisa intitula-se “Paraísos
perdidos ou preservados? A conquista da cidadania em áreas de proteção
ambiental”, orientadora: Rosane M.Prado e co-orientadora: Mariza C.Rocha.
[4] “Um cidadão com capacidade de vigiar e
participar na instrumentação das políticas públicas e com um projeto próprio
para alcançar uma manipulação de recursos naturais mais racional e eqüitativo,
e um entorno mais “habitável”, comprometido com a ‘planetariedade’” (GUTIEERREZ
E PRADO, 2002, p.16).
[5] As UCs devem ser criadas precedidas de
consulta pública e devem possuir um
conselho gestor, com caráter consultivo, no caso de UC de proteção integral,
segundo a Lei do SNUC, ou com caráter
consultivo ou deliberativo, segundo o Artigo 17º do Decreto nº 4.340/2002, que regulamenta a Lei
do SNUC.
[6] Dados obtidos no site
da Prefeitura Municipal de Macaé: www.pmmacae.gov.br; acesso em 10/08/2008.
[7] Lei da Mata Atlântica
– Lei n º 11.428/2006 – e Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos
Povos e Comunidades Tradicionais –Decreto nº 6.040/2007.
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